A EXPERIÊNCIA DE CONVERSAS COM MEU
PAI - REFLEXÃO SOBRE O MATERIAL BRUTO
Esses textos, no fundo, não
representam a vida de maneira realista, não dão uma informação, não propõem um
sentido, não constroem um eu. Eles mostram alguma coisa em processo,
fazendo-se, algo que o leitor só pode captar se ele se propuser a aceitar o
movimento. Não se trata de objetos para serem contemplados, mas instrumentos
que colocam em marcha. Eu falei de exercício espiritual. A leitura deve ser uma
participação nesse exercício: do contrário, o que sobra sobre o papel é somente uma acumulação estranha ou tediosa,
performances que desafiam o bom senso, listas, platitudes. Mas se for possível
entrar no movimento que carrega tudo isso, a magia então opera, estes textos
são atos, figuras em torno de um vazio, de uma falta, de um fracasso, em torno
de algo que só pode ser localizado, evocado, suscitado, através de tais
trajetos.
George Pérec
No ano de 2008, surgiram as
primeiras ideias para um projeto artístico baseado nas “conversas” que eu
mantinha com meu pai que não podia falar e que ficavam, em parte, registradas
nos papeizinhos que ele usava para se fazer entender. Essas frases, tiradas de
seu contexto, acumuladas aleatoriamente numa velha caixa de sapatos, me
pareciam sugerir um possível ponto de partida para a criação de uma dramaturgia
que, como a memória, colocasse o registro do vivido à mercê da complexa relação
entre presente e passado, experiência e registro, viver e “contar”. Foi dessa
forma que muitas vezes eu situei o início do projeto. No entanto, entendo hoje
que esta era muito mais uma justificativa para validar um interesse que era
movido por inquietações bem mais confusas na época: o desejo de revisitar a
história do pai tal como ela parecia a sua filha, a história e os nós dessa
relação, a possibilidade de tentar figurar na arte o que na vida permanecia um
campo nebuloso de afetos.
Alair Pereira Leite, filho do pastor evangélico José Fidelis e de Dona
Lusmar, cresceu numa comunidade chamada Vale da Benção no município de
Araçariguama, interior de São Paulo. Rompendo com a família evangélica,
trabalhou dos 13 aos 60 anos numa fábrica de tubos. Casou-se, teve três filhas.
Deixou também essa segunda família e passou a viver numa pequena casa isolada –
um anexo da fábrica onde trabalhava - cravada num morro entre os trilhos do
trem e a rodovia Pedro Taques no município de Cubatão.
A reaproximação entre meu pai e eu só se deu quando ele já não podia mais
falar. Finalmente “conversamos”. As conversas que nunca tínhamos tido antes.
Passei a recolher, ainda sem saber para que fim, esses fragmentos, resíduos das
tardes que passávamos juntos, sentados numa mesa de bar, pescando, ouvindo um
disco na vitrola. Tinham as “conversas” e tinham os silêncios. Curiosamente,
nessa mesma época, descobri que tinha uma doença degenerativa que levava à
perda de audição. As conversas e os silêncios se tornaram a base de um work in
process de quase sete anos.
Retorno às palavras do escritor George Pérec que abrem esse texto. A
citação, ao referir-se à própria obra do autor, faz recair a atenção mais sobre
o movimento implícito no trânsito entre os materiais do que neles propriamente.
Reconheço nessas palavras algo que diz respeito ao processo de Conversas com
meu pai: reflexão sobre o material bruto. Costumo dizer que o processo começou
de forma consciente em 2008, mas não tenho ideia de há quanto tempo, de forma
inconsciente, ele vinha sendo gestado em mim. A dramaturgia que ganhou força é,
justamente, a que procura então cruzar as histórias – as versões – não só de
memórias e visões sobre uma mesma pessoa, mas sobre o próprio processo.
O “material bruto” em Conversas com
meu pai, tenta ser a imagem de uma experiência que resistiu em encontrar uma
forma final, que negou toda possibilidade de síntese, ou, ao contrário, se
apegou a todas elas. O excesso, o acúmulo, a errância, as formalizações e os
abortos, os fragmentos, esboços, notas, o consciente, o inconsciente, a vida e
a arte, o embaralhamento completo entre uma coisa e outra. Tudo isso revela,
não a história, não o sentido, mas o movimento contínuo, os “instrumentos” que
colocaram e mantiveram “em marcha” o processo de Conversas com meu pai.
Durante estes anos, a arte – a ficção - autorizou esse penetrar em
territórios interditos no plano da realidade. Autorizou, por exemplo, sonhar o
incesto – tema caro a este processo - e concretizá-lo em imagens, narrativas.
Possibilitou entender os limites da comunicação verbal ou, mais propriamente, o
silêncio como poética. A arte assumiu para si o fantasma da morte e cruzou as
ampulhetas do processo artístico e o processo de vida. Criou, na verdade, uma
relação estreita de modo que o primeiro não pôde se concluir enquanto o segundo
não fechasse seu ciclo.
E, evidentemente, de nada disso se tinha um controle objetivo. Achei, num
momento, que tinha uma peça sobre a relação conflituosa entre um pai e uma
filha ficcionalizada numa história de incesto, depois uma peça performativa
onde a realidade entrava como um ready made na cena teatral, depois uma outra
que criava um tempo e espaço suspensos para a emergência de uma fala-fluxo que
ao mesmo tempo que seria suportada pelos ecos de uma suposta experiência real,
já não se atinha mais aos dados concretos dessa experiência e trabalhava num
limite de saturação a ponto de não reconhecermos mais os personagens, imagens e
situações que lhe deram origem. Cada uma parecia ser a certa, a definitiva, a
que iria melhor representar o que me atravessava na relação com os materiais.
Mas nunca isso foi verdade, por várias e diferentes razões, e a forma
esboçada perdia sua validade, e deixava o terreno livre para uma nova
tentativa. E assim, sucessivamente, até que sob a pressão de um novo edital –
mais um – na tentativa de formular do que se tratava o projeto, me dei conta de
que o processo tinha acabado. Descobri que eu não tinha mais perguntas que
impulsionassem aquela incansável busca e produção de materiais: as entrevistas,
as incontáveis idas à Cubatão, o vasculhar em baús, cartas, documentos, o
constante escrever e escrever (de notas, esboços, histórias), o movimento em
direção ao passado, à memória. O que não significava que tivesse as respostas,
mas, simplesmente, que não precisava mais delas.
Mas de que “processo” eu falava se não havia, finalmente, uma peça ou um
filme?
E nesse emaranhado que se tornou o processo artístico e o processo de vida,
naquele momento permaneci indiferenciando uma coisa da outra. Mas fato é que,
menos de duas semanas depois, disso que para mim foi uma revelação - o fim do “processo” –, e ainda me perguntando
sobre o porquê de tudo isso, foi a morte que surgiu como uma possível resposta.
Meu pai morreu no dia 15 de outubro de 2011 e, nesse dia, eu entendi o que
estava acontecendo nesses anos que, sem eu saber, estavam precedendo a sua
morte. Sim, esses esboços, essas tentativas eram “atos”. E esta grande ação -
espécie de performance de longa duração – prescindia de uma peça, de um filme,
de um “resultado” final. Já que o processo - essa foi a grande descoberta - era
a obra.
A cena como work in process: uma
possível “peça-relato”
Em outubro de 2012, acolhida em residência na Oficina Cultural Oswald de
Andrade, depois de cinco anos onde não mais que três pessoas, parceiros,
tiveram acesso a partes da experiência, abri, enfim, meu “work in process” para
uma plateia de amigos, alunos e curiosos atraídos pela pesquisa. Em uma hora e
meia de algo que não podia chamar de “ensaio aberto” (já que desde de 2009 não
realizei mais nada que se parecesse com um “ensaio”), expus, apresentei,
compartilhei os elementos documentais e ficcionais que surgiram ao longo do
processo.
Uma espécie de cenário-instalação com quinze telas de projeção entre
monitores, velhas TV’s, notebooks, acomodou os resíduos desta longa
experiência. Os vídeos, os papéis – infinitos esboços -, os objetos – plantas
vivas, uma vitrola, uma piscina de plástico, um antigo quadro
desproporcionalmente grande –, entulharam o espaço remetendo ao “excesso” de um
processo que se recusa a encontrar uma forma-síntese, um sentido único, e opta
então por preservar seus elementos na forma “bruta”. As 15 telas onde são
projetados fragmentos do material em vídeo captados durante estes anos pelo
cineasta Bruno Jorge, revelam que ali, talvez, exista em latência um filme,
possivelmente vários filmes, mas em realidade nenhum. No material bruto revelado
em cena vemos então as várias obras que dali poderiam ter surgido.
A narrativa foi organizada em três fases: o porão, o viveiro e a sala de
jantar, correspondendo a três grandes movimentos do processo. Nestas fases,
procedimentos, estratégias e temas se sobressaíram: a separação, o incesto, o
silêncio, o isolamento, a morte. Se organizaram em torno de um projeto de peça,
depois de um filme, retornaram a uma peça. Ensaiou estas formas e abortou todas
elas. Era impossível fixar um rosto, um discurso. Estava “em processo”,
compreendendo “o risco implícito de não concluir para um produto final,
mantendo-se enquanto percurso criativo[1]”. E é este percurso que norteou o
caminho entre os materiais que expus neste exercício cênico de uma hora e meia.
Fazendo menção a tudo que poderia ter sido, os verbos condicionais imperaram,
ao mesmo tempo que ao dizer “eu teria feito isso, teria sido assim, etc” eu
performava a possibilidade que não vingou, encenava versões abortadas de cenas,
de histórias. Todas as possibilidades que existiram no processo são rejeitadas
ao mesmo tempo que são presentificas. Elas expõem seu fracasso ao mesmo tempo
que “acontecem” no jogo do “teria sido assim”. Dessa forma, tudo é negado ao
mesmo tempo que tudo é afirmado. As três fases não remetem a uma progressão
entre uma e outra, e os fracassos não significam que, em algum lugar, talvez,
existisse uma ideia melhor. O que se passa, o que se passou ao menos nestes
dias de compartilhamento, foi que pude entender, fazendo, manipulando meus “arquivos”,
ali, diante da plateia - minhas testemunhas naquela experiência sem nome –, que
estas formas não eram nunca suficientes. Elas não bastavam. Foi só ao fim do
primeiro dia de abertura, que compreendi, a essa altura, mais esse “movimento”.
E para o dia seguinte, incorporei aos meus “materiais”, sentindo o quanto o
processo ainda seguia vivo e aberto, um pensamento de Jacques Lacan segundo o
qual nem tudo pode encontrar “satisfação nos objetos da realidade”. Há
experiências que são somente a “revelação de um vazio”, um “nada de nomeável”.
Algo que só se manifesta de maneira negativa. “Como se a negatividade trouxesse
uma forma de presença daquilo que desconhece imagem, mas que busca expressão
ali mesmo no lugar onde o acesso pela palavra mostrou-se impossível”.